Tuesday, February 1, 2011

Neuromancer

Uma das três jóias do cyberpunk, junto a Blade Runner e Ghost in the Shell, Neuromancer foi escrito por William Gibson e publicado em 1984.

E o que dizer de Neuromancer que já não foi dito antes
Em suma, é o arquétipo do cyberpunk, praticamente o criador do gênero, influente da data da sua publicação até os dias atuais.

O livro é quase que uma armadilha de si mesmo, tão inovador para a ficção-científica e uma obra tão completa que é praticamente impossível superá-la, apesar de William Gibson ter conseguido tal feito livros depois.

A história é até meio batida hoje em dia: um hacker é contratado por um misterioso empregador para o trabalho definitivo.
Com essa premissa simples, Gibson criou um gênero e revolucionou a então estagnada ficção-científica.
Falar bem de Neuromancer é praticamente chover no molhado.
Então vou fazer uma análise de alguns elementos do livro.


Protagonista

Case é o protagonista de Neuromancer, o hacker junkie, irônico, que perdeu suas habilidades, suicida. Filhote direto dos protagonistas do gênero hardboiled, o típico herói durão, Case é, acima de tudo, humano, no sentido de ser falho. E é a sua própria condição que permite a sua salvação e o retorno à sua vida antiga de hacker. Vagando pelas ruas do Japão sem rumo, aceitando qualquer tipo de trabalho, Case é vítima da sua ganância e acaba na sarjeta, uma figura trágica, esperando pela morte.


Razor Girl

Através da personagem Molly, Gibson inverte o papel dos gêneros masculino e feminino. Enquanto Case toma um papel passivo durante o curso da história em suas incursões pelo cyberespaço, Molly é a epítome do "leão-de-chácara": mesmo não sendo imponente e retendo qualidades femininas, ela é fisicamente forte, durona, sem remorsos, ganhando a vida como guarda-costas/mercenária. Praticamente um trabalho de homem, certo? Não no mundo de Gibson, e não no nosso. A primeira aparição de Molly não se deu em Neuromancer contudo, isso acontecendo em um dos contos de Gibson, suas características já bem definidas e o mais interessante é que mesmo tendo um relacionamento amoroso com o protagonista homônimo de Johnny Mnemonic, Molly já era a personificação da Razor Girl, servindo como os "músculos" de seu amor. Em Neuromancer, o personagem é expandido e temos através dela mesmo explicações de seu passado, passado esse que reverte a definição estabelecida até então: Molly trabalhava como "meat puppet", ou seja, como prostituta. Através da profissão mais antiga do mundo, Gibson faz emergir um novo papel em sua, e na nossa, sociedade. É alugando seu corpo para clientes que Molly consegue dinheiro para ampliar seu próprio ser, através de cirurgias de implantes de lâminas retráteis afiadas posicionadas debaixo de suas unhas e para um sistema nervoso também afiado. Sem falar no silicone em sua cabeça - talvez o último lugar que uma mulher iria pensar em colocar silicone.
Com certeza Molly é um dos personagens mais fascinantes não apenas de Neuromancer, mas de todo o universo cyberpunk e da ficção-científica.
Na adaptação de Johnny Mnemonic para o cinema, estrelando Keanu Reeves, a personagem de Molly foi substituida por outra por problemas de direitos sob a personagem, e não foi muito bem aproveitada. Em Matrix, outro filme cyberpunk, também estrelado por Reeves, Molly ganhou uma representação digna através da personagem Trinity, que mesmo não possuindo todas as habilidades de sua antecessora, faz jus ao arquétipo da Razor Girl estabelecido por Gibson.
A melhor descrição de Molly ocorre no capítulo 18 de Neuromancer: "Era uma performance. Era como o ápice de toda uma vida de fã de fitas de artes marciais, filmes baratos, do tipo que Case cresceu assistindo. Ele sabia que, por alguns segundos, ela era todos os heróis durões, Sony Mao nos velhos vídeos da Shaw, Mickey Chiba, a árvore genealógica toda de volta até Lee e Eastwood."

Inteligência Artificial

Em Neuromancer, as I.As são o passo a frente, a próxima evolução. Em Ghost in the Shell, temos a fusão de um humano com uma I.A. Em Neuromancer, a junção acontece entre duas I.As, criando um ser totalmente novo. No livro, existe a polícia da Turing, que tem a função de policiar as IAs, e terminá-las se for o caso de sua evolução. Como Gibson descreve, elas nascem com um revolver apontado para suas cabeças, para o nanosegundo de pensarem em evoluir, serem executadas.
No nosso mundo, algumas notícias recentes são empolgantes (como aqui e aqui), mas infelizmente, a nossa realidade está muito distante da realidade retratada em Neuromancer. Uma IA que deseja por algo, tem uma personalidade própria, por enquanto é apenas real no mundo da ficção.
As implicações de uma IA evoluída de tal maneira é difícil de imaginar para o nosso mundo. Basta dizer que por enquanto, elas são empregadas em diversas áreas, como Finanças e Medicina, entre outras.
Fazendo um paralelo entre a utilização de uma IA nessas áreas em nosso mundo e no de Neuromancer, vemos algumas felizes coincidências. Wintermute por exemplo, é uma IA de aplicação financeira e uma breve pesquisa sobre o assunto nos leva a várias instituições bancárias que se utilizam delas para investir em ações em bolsas de valores, por exemplo.
Na Medicina, o uso mais simples seria em diagnósticos e em países da Europa por exemplo, existe o histórico médico eletrônico, e a existência desse histórico eletrônico e a função de monitoração de eventos pode prever uma infecção generalizada em um hospital e, em se tratando de um indivíduo, pode detectar erros médicos e numa visão geral, melhorar o cuidado preventivo desse paciente. Em Neuromancer, uma IA é a responsável em fornecer o procedimento médico que cura o nosso protagonista de sua condição, rendendo à clínica várias patentes médicas à frente da competição acirrada do black market.
Deixando os paralelos de lado, um dos fatos mais interessantes no livro é a própria capacidade de uma IA em manipular os eventos do mundo a seu favor dando a alguém, em um estado muito pior no qual encontramos o nosso protagonista, uma personalidade e assim, disparando os eventos da história.
É claro que na nossa realidade um acontecimento dessa magnitude parece estar muito a nossa frente mas não parece inteiramente implausível dentro de alguns (bons) anos.

Tecidos transgênicos

Em Neuromancer, a presença das clínicas de criação de órgãos ou tecidos é frequentemente mencionada na primeira parte do livro e Case passa por processos que lhe dá fígado e pâncreas novos, além do mais importante, um sistema nervoso "renovado", por assim dizer.
Lendo a respeito desses clínicas em Neuromancer, é impossível não pensar em uma futura existência no nosso mundo. Clínicas autorizadas, é claro, e não do black market, com fiscalização e autorização de funcionamento, já existem mas o problema é o disparate do nível da tecnologia representada no livro e a nossa. Muito além da tech, outros fatores invariavelmente influenciam no avanço da própria. Não é difícil de achar alguns exemplos, tanto na ficção, embora esses pareçam ser mais dramáticos, quanto na vida real. E de fatores que influenciam tal avanço pode-se falar com facilidade do fator religião. Na ficção, temos o segundo episódio de Stand Alone Complex. No mundo real, temos nas pesquisas e aplicações em torno das células-tronco o exemplo mais em voga e é fácil pensar em uma situação em que um indivíduo tem a sua disposição "órgãos de reserva", inteiramente desenvolvidos em laboratório. Mas o uso das células-tronco é motivo de polêmica no mundo tudo, e a tendência de pesquisas independentes, de laboratórios e cientistas não ligados a governos, só tem aumentado. Ponto para quem é pro-choice.
O assunto é rapidamente mencionado também no oitavo episódio da primeira temporada de GitS: Stand Alone Complex.
Pesquisando rapidamente, em um artigo de 2003, fala-se de uso medicinal de animais transgênicos (que tiveram seus DNAs alterados de uma forma ou de outra) em humanos.
Para mais informações a respeito do assunto, sugiro visitar o site do Instituto para Ciências Moleculares da Finlândia - aqui.


Megacorporações

Em Neuromancer, as megacorporações, além da Tessier-Ashpool, que é um elemento-chave da história, apenas recebem algumas menções, mas o suficiente para vermos por elas uma possível evolução das nossas atuais.
E que evolução seria essa? Bem, analisando empresas como a Apple e o Google, as duas maiores que surgiram nas últimas décadas, e comparando-as com o que Gibson descreve em seu livro, é fácil traçar vários paralelos entre ficção e realidade.
Primeiro, vamos à definição da palavra: uma megacorporação é aquela que uma massiva entidade, possui monopólio não apenas de um, mas de vários mercados e exercem controle total sob seus empregados, através de uma política extrema de cultura corporativa.
Em Neuromancer, Gibson escreve sobre o sarariman (termo no inglês dos japoneses), aquele que nasce, vive e morre por sua companhia e isso é claramente visível em um simples símbolo que o empregado carrega, que o faz se distinguir na multidão: uma tatuagem da corporação, praticamente um código de barras.
Na nossa realidade, com o crescimento - Apple - e surgimento - Google, Facebook - das empresas de tecnologia, não é difícil ver, se não agora, para daqui a alguns anos, várias práticas sugeridas em Neuromancer e principalmente no segundo livro de Gibson, Count Zero, se tornarem realidade.
O Google é famoso também por propiciar um ambiente de trabalho nunca visto antes em qualquer empresa existente. Descontraído, divertido, leve, livre, todas as condições que nunca antes uma empresa ofereceu tem destaque e é a norma para um dos gigantes da Internet. É claro, tudo isso distante do futuro imaginado por Gibson, mas esse futuro não deixa de ser impossível. Seja por vontade própria, ou por fatores externos, não me surpreenderia ver o empregado x de uma empresa y morando nas facilidades da sua companhia, estudando em uma escola patrocinada ou até mesmo fundada pela companhia, vivendo-a 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, até finalmente ter o seu funeral pela companhia. Pode ser um exagero a primeira vista, mas alguns desses elementos, como viver o seu emprego 24 horas por dia todos os dias já é uma realidade comprovada. Todos sabem que um empregado eficiente e produtivo iguala lucro. Com essas tendências, as companhias não terão nada a perder, muito pelo contrário, apenas ganhar.
A Apple, por sua vez, nasceu como o patinho feio da Microsoft e desde a invenção do IPod e seus filhotes "I" vem dominado o mercado da tecnologia através dos seus produtos. O Think Different, slogan usado pela marca a tempos atrás, se tornou um estilo de vida adotado por milhões de usuários do IPhone, sem que eles saibam. O Different de antes é o normal de hoje.
Para resumir, pego uma fala do filme Clube da Luta, que não se encaixa dentro do gênero cyberpunk mas se encaixa perfeitamente nesse pensamento das megacorporações:
"When deep space exploration ramps up, it'll be the corporations that name everything, the IBM Stellar Sphere, the Microsoft Galaxy, Planet Starbucks."
Traduzindo:
"Quando a exploração do espaço crescer, vão ser as corporações que vão nomear tudo, a Esfera Estelar IBM, a Galáxia Microsoft, Planeta Starbucks."
Com essas empresas e corporações adentrando o imaginário popular, a ficção de Neuromancer vai aos poucos se tornando realidade.
Para fugir um pouco de Neuromancer, mas continuando ainda com Gibson, agora com Count Zero, um dos pontos centrais da trama é a deserdação de um cientista de uma companhia para outra rival. Tal acontecimento só é possível através de grupos de mercenários contratados exatamente para tais funções. Ou seja, além da empresa ser uma megacorporação, se ela quer manter sua posição no mercado, a existência de um exército particular (PMC) é obrigatória.
O próprio fato do empregado querer mudar de empresa é motivo de conflitos, algo que na ficção é fácil de pensar enquanto no nosso mundo, é difícil conseguir imaginar um futuro desses, a não ser que ocorra um ou vários acontecimentos que façam ou forcem uma radical mudança de postura e valores por parte delas.

Esses 5 elementos de Neuromancer são os que acho que valem a pena analisar e ficção ou realidade, eles fazem parte do nosso consciente coletivo.
Quase 30 anos depois de sua publicação, já é tempo de alguns desses elementos - Inteligência Artificial, estou olhando para você - se tornarem realidade!



4 comments:

  1. Olá. Gostaria de saber se também há posts sobre o Count Zero, Monaliza Overdrive e o Reconhecimento de Padrões outros livros do william Gibson...

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  2. Apenas sobre o Reconhecimento de Padrões!

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